quinta-feira, 12 de março de 2009

Meu Caro Amigo

‘Meu caro amigo’: carta em forma de canção


Marina Vaz*


No álbum de Chico Buarque “Meus caros amigos”, lançado em 1976, entre sucessos como “O que será (À flor da terra)” e “Mulheres de Atenas”, uma música se destaca por misturar gêneros de dois tipos de escrita: a letra de música e a carta. A “carta-canção”, feita por Chico e Francis Hime, é destinada ao teatrólogo Augusto Boal ­– que, na época, estava exilado em Lisboa – e é um dos exemplos da chamada canção de protesto.

Concebida durante o governo de ditadura de Ernesto Geisel, seu refrão explicita bem a mensagem principal da letra. Depois de anunciar que precisa contar ao destinatário “as novidades”, o autor lança os versos “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol”. Ora, o futebol, a predominância no Brasil de estilos como o samba e as (óbvias) variações climáticas não são exatamente novidades que mereçam ser destacadas em uma carta para um amigo distante.

Com uso da ironia, a mensagem passada é de que nada mudou no país desde a saída do exilado e que realmente “a coisa aqui tá preta”, como sugere um dos versos seguintes. Para “segurar esse rojão”, o eu-lírico (a voz que fala na letra) acaba buscando refúgio em meios de prazer momentâneo, como a “cachaça”, o “cigarro” e o “carinho”. Nesse contexto, a palavra “choro”, tida inicialmente como um estilo musical, assume outro sentido – representa a tristeza em relação à situação do país. E essa tristeza aparece disfarçada por uma suposta alegria, entremeada de “samba” e de “rock’n’roll”.

Além disso, quando ele se refere a seu lugar de origem como “Aqui na terra”, torna-se inevitável pensar em um “lá”, o local onde o destinatário da mensagem se encontra. Este lugar poderia ser um “céu” (em oposição a “terra”, com letra minúscula), reforçando a idéia de que a vida política e social do Brasil da época nem de longe lembrava a imagem idealizada de paraíso. Ou até mesmo o “espaço” (em oposição a “Terra”, planeta, com letra maiúscula), reforçando a idéia de que o amigo foi obrigado a sair do país, sumiu, ou, na linguagem informal, “foi pro espaço”.

Curioso é perceber que o artista, ao escolher a canção “Meu caro amigo” para dar nome ao disco, colocou-a no plural. Ou seja, apesar de a idéia original da canção ser mandar notícias a um determinado exilado, ela sai ainda mais do plano particular quando o álbum é batizado de “Meus caros amigos”. Isso porque havia mais “amigos” (exilados ou não) como Augusto Boal, vítimas da Ditadura. Assim, o próprio título do álbum reforça o caráter crítico que permeia não apenas esta, mas diversas de suas canções.


* Marina Vaz é jornalista e apaixonada por MPB.





LETRA:

Meu caro amigo
Francis Hime/ Chico Buarque)


Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando, que também, sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo pessoal
Adeus

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