quinta-feira, 12 de março de 2009

Bandeira

De Manuel Bandeira a Zeca Baleiro


Marina Vaz*

Ouvir a música “Bandeira”, do maranhense Zeca Baleiro, é sempre instigante. Em um primeiro momento, ela pode ser interpretada como uma bela canção que fala dos anseios e desejos humanos, como espécies de “bandeiras” levantadas pelo eu-lírico (a voz que fala na canção). Mas a citação, ao final da música, do verso “Vida noves fora zero”, de Manuel Bandeira, abre caminho para a compreensão das relações intertextuais existentes entre as duas obras. E o que poderia parecer, à primeira vista, escondido na música do compositor torna-se escancarado no próprio título da canção, que homenageia o poeta pernambucano.


“Belo belo”, de Manuel Bandeira

Os versos citados por Baleiro são do poema “Belo belo”, em que Bandeira expõe a frustração com a vida em trechos como: “Tenho tudo que não quero/ Não tenho nada que quero”. Fecha-se um círculo de infelicidade: o eu-lírico não somente tem tudo aquilo que não quer, como também não consegue absolutamente nada do que deseja. E o que, afinal, ele não quer? “Não quero óculos nem tosse/ Nem obrigação de voto”. Reúnem-se aí dois elementos importantes para a compreensão das causas de seu descontentamento: as limitações físicas (“óculos” e “tosse”) e as limitações sociais (representada pela “obrigação de voto”). E as imagens utilizadas para ilustrar suas possíveis fontes de prazer referem-se, invariavelmente, a lugares ou situações inatingíveis: o topo das montanhas (os “píncaros”); a “fonte escondida”; a “escarpa inacessível”; “a luz da primeira estrela”.

O desejo de experimentação também é demonstrado pelo prazer voluptuoso ao ansiar, com mesma intensidade, o “moreno de Estela”, a “brancura de Elisa”, a “saliva de Bela” e as “sardas de Adalgisa”. Mas, por reconhecer que seus desejos estão distantes demais daquilo que, de fato, ele possui, ele trata de voltar à realidade: “Mas basta de lero-lero/ Vida noves-fora zero”. No fim, o que lhe sobra é o resultado de uma conta cruel: no balanço “matemático” de sua existência, o resultado é zero.

Observando a forma como o poema se estrutura, pode-se ver que grande parte dos versos faz referência ao que o eu-lírico quer. Ou seja, considerando a lógica dos primeiros versos (“Não tenho nada que quero”), os versos fazem referência ao que ele gostaria de ter mas não tem. Fica claro que seus desejos e suas necessidades são muito maiores do que aquilo de que ele dispõe na vida. Dessa forma, “Quero quero muita coisa” transmuta-se a um “não tenho muita coisa”.


“Bandeira”, de Zeca Baleiro

Diferentemente do que acontece no poema “Belo belo”, de Manuel Bandeira, a canção “Bandeira”, de Zeca Baleiro, é tomada, em sua maior parte, por versos panfletários daquilo que o eu-lírico não quer: “Eu não quero ver você cuspindo ódio / Eu não quero ver você fumando ópio”. Assim, o que é rejeitado são as escolhas feitas pelos próprios indivíduos da sociedade justamente para “sarar a dor”.

A dor, neste caso, não se refere mais a problemas de saúde (à “tosse”). A sociedade moderna, que, com os avanços científicos, descobriu a cura de várias doenças, criou, em contrapartida, indivíduos que “cospem ódio” e “choram veneno”. Indivíduos mesquinhos que oferecem “café pequeno” (ou que são, eles mesmos, “cafés pequenos”, expressão pejorativa utilizada para designar os que não têm importância). Diante dessa desilusão, o eu-lírico passa a rejeitar tudo o que provém dessa sociedade, indiscriminadamente: “Eu não quero isso seja lá o que isso for”.

Com os versos “Não quero medir a altura do tombo / Nem passar agosto esperando setembro”, a canção demonstra o desejo de querer-se livrar da prudência excessiva e do hábito de não aproveitar o presente esperando-se o futuro. Por isso, o melhor futuro parecer ser mesmo o que está “hoje escuro”, quando ainda se encontra no plano da idealização.

Depois de o eu-lírico da música falar tudo o que ele não quer (o que, de acordo com a lógica de Manuel Bandeira, é tudo aquilo que, na verdade, ele tem), ele parte então para o que deseja: “Quero a Guanabara quero o rio Nilo / Quero tudo ter estrela flor estilo / Tua língua em meu mamilo água e sal”. Nestes versos, a canção se aproxima ainda mais do poema de Bandeira, com referência claras à “luz da primeira estrela” e à “rosa que floresceu”. Além disso, “a língua no mamilo” poderia muito bem ter deixado resquícios da “saliva de Adalgisa”, citada por Bandeira.

Enquanto, no poema, o eu-lírico diz muito sobre o que ele quer (ou seja, sobre o que ele não tem), na canção de Baleiro, o foco é o que ele não quer (ou seja, o que ele tem). Isso porque a música, mais atual, retrata o pensamento de alguém já inserido numa sociedade moderna de consumo. Ele tem, mas não está satisfeito com aquilo que possui. Volta-se, então, para os elementos mais simples: a estrela, a flor e as paisagens naturais (ora Pernambuco, Bagdá e Cusco, ora a Guanabara e os rios Nilo e Tejo). Entretanto, o balanço da vida nos dois casos é o mesmo: “Vida noves-fora zero”.


* Marina Vaz é jornalista e apaixonada por MPB.


Leia o poema "Belo belo", de Manuel Bandeira, e ouça "Bandeira", de Zeca Baleiro.


Ouça:


Belo belo

(Manuel Bandeira)

Belo belo minha bela

Tenho tudo que não quero

Não tenho nada que quero

Não quero óculos nem tosse

Nem obrigação de voto

Quero quero

Quero a solidão dos píncaros

A água da fonte escondida

A rosa que floresceu

Sobre a escarpa inacessível

A luz da primeira estrela

Piscando no lusco-fusco

Quero quero

Quero dar a volta ao mundo

Só num navio de vela

Quero rever Pernambuco

Quero ver Bagdá e Cusco

Quero quero

Quero o moreno de Estela

Quero a brancura de Elisa

Quero a saliva de Bela

Quero as sardas de Adalgisa

Quero quero tanta coisa

Belo belo

Mas basta de lero-lero

Vida noves fora zero

Bandeira

(Zeca Baleiro)

Eu não quero ver você cuspindo ódio

Eu não quero ver você fumando ópio

Pra sarar a dor

Eu não quero ver você chorar veneno

Não quero beber o teu café pequeno

Eu não quero isso seja lá o que isso for

Eu não quero aquele eu não quero aquilo

peixe na boca do crocodilo

braço da Vênus de Milo acenando ciao

Não quero medir a altura do tombo

Nem passar agosto esperando setembro

Se bem me lembro

O melhor futuro este hoje escuro

O maior desejo da boca é o beijo

Eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos

Quero a Guanabara quero o rio Nilo

Quero tudo ter estrela flor estilo

Tua língua em meu mamilo água e sal

Nada tenho vez em quando tudo

Tudo quero mais ou menos quanto

Vida vida noves fora zero

Quero viver quero ouvir quero ver

(Se é assim quero sim acho que vim pra te ver

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante este seu comentario. Coloquei um link dele no meu blog. www.musicaemprosa.musicblog.com.br
Parabéns!