Um domingo (violento) no parque
Marina Vaz*
Violência em meio à ingenuidade. É assim que se pode definir a canção “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, segunda classificada no Festival de 1967. A letra, que narra a história de um triângulo amoroso, consegue a façanha de ilustrar cenas que nos remetem a um universo puro e singelo, retratando, ao mesmo tempo, a frieza de um crime passional. A primeira estrofe se inicia de forma simples, com a apresentação de dois dos personagens centrais da história, ambos pertencentes a camadas populares da sociedade. José, que “trabalhava na feira”, era o “rei da brincadeira”. João trabalhava “na construção” e era “o rei da confusão”.
Entretanto, essa lógica se altera quando chega o dia em que João “resolveu não brigar” e “foi namorar” no parque com Juliana. A personagem-pivô do crime, durante toda a música/ história, é cercada de elementos que conferem a ela e a seu relacionamento com João um ar ingênuo. Juliana carrega uma rosa, símbolo do amor romântico, mas ela também segura um sorvete, conferindo-lhe um ar infantil.
É curioso perceber que o compositor ilustra a rosa e o sorvete como estando “na mão” de Juliana. Eles não estão nas mãos ou, ainda, um em cada mão. Mais do que um recurso de rima, isso reforça a imagem de inocência atribuída a Juliana. São dois elementos, a rosa (amor) e o sorvete (prazer infantil) convivendo em uma única mão (a mão de Juliana, que representa essa junção).
A ira de José ao ver Juliana com João se deve não a uma traição propriamente dita mas, sim, à inveja e ao desejo não-concretizado por Juliana (“Juliana, meu sonho, uma ilusão”). E é levado por esse sentimento que José, “o rei da brincadeira”, perde a razão. O verso “O espinho da rosa feriu o Zé” mostra o impulso destrutivo do amor (o espinho, em oposição à pétala, à suavidade). Deixando de lado toda a possível nobreza de seu sentimento, José se vê dominado por absoluta frieza (“E o sorvete gelou seu coração”).
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, dançando no peito - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, girando na mente - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
Na primeira delas, a imagem da cena que José presenciou (representada pelo sorvete e pela rosa) está “dançando” em seu peito. Na segunda, ela está “girando” em sua mente. A diferença entre elas é clara pela oposição entre “peito” (emoção) e “mente” (razão). É como se, num primeiro momento, José estivesse dominado pela emoção, na medida em que ainda não havia assimilado bem seus sentimentos. Num segundo momento, ele se utiliza da razão para planejar suas ações futuras.
Mas a oposição entre as estrofes não pára por aí. Os verbos “dançando” e “girando” também são usados de maneira oposta. O primeiro, neste contexto, passa a idéia de um sentimento confuso, sem uma ordem previamente definida. Já o segundo nos remete a uma engrenagem (de novo, a racionalidade) em movimento. É como se ele estivesse neste momento, literalmente, “maquinando” seu plano. O resultado disso? O sangue (a violência) se derrama sobre os elementos de ingenuidade: o sorvete agora é de morango, e a rosa também fica vermelha. “Olha a faca!”
* Marina Vaz é jornalista e apaixonada por MPB.
Ouça:
“Domingo no parque”
(Gilberto Gil)
O rei da brincadeira - ê, José
O rei da confusão - ê, João
Um trabalhava na feira - ê, José
Outro na construção - ê, João
A semana passada, no fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira
Não foi pra lá pra Ribeira
Foi namorar
O José como sempre no fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio
Foi no parque que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana, seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, dançando no peito - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, girando na mente - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
Juliana girando - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
O amigo João - João
O sorvete é morango - é vermelho
Oi, girando, e a rosa - é vermelha
Oi, girando, girando - é vermelha
Oi, girando, girando - olha a faca!
Olha o sangue na mão - ê, José
Juliana no chão - ê, José
Outro corpo caído - ê, José
Seu amigo, João - ê, José
Amanhã não tem feira - ê, José
Não tem mais construção - ê, João
Não tem mais brincadeira - ê, José
Não tem mais confusão - ê, João
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