domingo, 15 de março de 2009

Domingo no parque

Um domingo (violento) no parque


Marina Vaz*


Violência em meio à ingenuidade. É assim que se pode definir a canção “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, segunda classificada no Festival de 1967. A letra, que narra a história de um triângulo amoroso, consegue a façanha de ilustrar cenas que nos remetem a um universo puro e singelo, retratando, ao mesmo tempo, a frieza de um crime passional. A primeira estrofe se inicia de forma simples, com a apresentação de dois dos personagens centrais da história, ambos pertencentes a camadas populares da sociedade. José, que “trabalhava na feira”, era o “rei da brincadeira”. João trabalhava “na construção” e era “o rei da confusão”.

Entretanto, essa lógica se altera quando chega o dia em que João “resolveu não brigar” e “foi namorar” no parque com Juliana. A personagem-pivô do crime, durante toda a música/ história, é cercada de elementos que conferem a ela e a seu relacionamento com João um ar ingênuo. Juliana carrega uma rosa, símbolo do amor romântico, mas ela também segura um sorvete, conferindo-lhe um ar infantil.

É curioso perceber que o compositor ilustra a rosa e o sorvete como estando “na mão” de Juliana. Eles não estão nas mãos ou, ainda, um em cada mão. Mais do que um recurso de rima, isso reforça a imagem de inocência atribuída a Juliana. São dois elementos, a rosa (amor) e o sorvete (prazer infantil) convivendo em uma única mão (a mão de Juliana, que representa essa junção).

A ira de José ao ver Juliana com João se deve não a uma traição propriamente dita mas, sim, à inveja e ao desejo não-concretizado por Juliana (“Juliana, meu sonho, uma ilusão”). E é levado por esse sentimento que José, “o rei da brincadeira”, perde a razão. O verso “O espinho da rosa feriu o Zé” mostra o impulso destrutivo do amor (o espinho, em oposição à pétala, à suavidade). Deixando de lado toda a possível nobreza de seu sentimento, José se vê dominado por absoluta frieza (“E o sorvete gelou seu coração”).

Essa passagem da confusão de sentimentos, causado pelo choque inicial, para a execução de sua vingança é brilhantemente representada por Gilberto Gil através de duas estrofes simples como Juliana. Veja abaixo:

O sorvete e a rosa - ô, José

A rosa e o sorvete - ô, José

Oi, dançando no peito - ô, José

Do José brincalhão - ô, José

O sorvete e a rosa - ô, José

A rosa e o sorvete - ô, José

Oi, girando na mente - ô, José

Do José brincalhão - ô, José

Na primeira delas, a imagem da cena que José presenciou (representada pelo sorvete e pela rosa) está “dançando” em seu peito. Na segunda, ela está “girando” em sua mente. A diferença entre elas é clara pela oposição entre “peito” (emoção) e “mente” (razão). É como se, num primeiro momento, José estivesse dominado pela emoção, na medida em que ainda não havia assimilado bem seus sentimentos. Num segundo momento, ele se utiliza da razão para planejar suas ações futuras.

Mas a oposição entre as estrofes não pára por aí. Os verbos “dançando” e “girando” também são usados de maneira oposta. O primeiro, neste contexto, passa a idéia de um sentimento confuso, sem uma ordem previamente definida. Já o segundo nos remete a uma engrenagem (de novo, a racionalidade) em movimento. É como se ele estivesse neste momento, literalmente, “maquinando” seu plano. O resultado disso? O sangue (a violência) se derrama sobre os elementos de ingenuidade: o sorvete agora é de morango, e a rosa também fica vermelha. “Olha a faca!”


* Marina Vaz é jornalista e apaixonada por MPB.


Ouça:


“Domingo no parque”

(Gilberto Gil)

O rei da brincadeira - ê, José

O rei da confusão - ê, João

Um trabalhava na feira - ê, José

Outro na construção - ê, João

A semana passada, no fim da semana

João resolveu não brigar

No domingo de tarde saiu apressado

E não foi pra Ribeira jogar

Capoeira

Não foi pra lá pra Ribeira

Foi namorar

O José como sempre no fim da semana

Guardou a barraca e sumiu

Foi fazer no domingo um passeio no parque

Lá perto da Boca do Rio

Foi no parque que ele avistou

Juliana

Foi que ele viu

Juliana na roda com João

Uma rosa e um sorvete na mão

Juliana, seu sonho, uma ilusão

Juliana e o amigo João

O espinho da rosa feriu Zé

E o sorvete gelou seu coração

O sorvete e a rosa - ô, José

A rosa e o sorvete - ô, José

Oi, dançando no peito - ô, José

Do José brincalhão - ô, José

O sorvete e a rosa - ô, José

A rosa e o sorvete - ô, José

Oi, girando na mente - ô, José

Do José brincalhão - ô, José

Juliana girando - oi, girando

Oi, na roda gigante - oi, girando

Oi, na roda gigante - oi, girando

O amigo João - João

O sorvete é morango - é vermelho

Oi, girando, e a rosa - é vermelha

Oi, girando, girando - é vermelha

Oi, girando, girando - olha a faca!

Olha o sangue na mão - ê, José

Juliana no chão - ê, José

Outro corpo caído - ê, José

Seu amigo, João - ê, José

Amanhã não tem feira - ê, José

Não tem mais construção - ê, João

Não tem mais brincadeira - ê, José

Não tem mais confusão - ê, João

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